22 de abril de 2022

O viking e a borboleta


Observe só como a natureza decidiu intervir nesse mundão. Imagine um homem daquele porte de cangaceiro. O homem era bruto. Um selvagem. O cabra acordava com um gole de cachaça. Cuspia no pinico e, enfim, levantava. Fazia sol ou fazia chuva e o sujeito não mudava. De noite, na bodega, ficava de fogo e fazia discurso. Era um verdadeiro poeta das novas tendências. As pessoas, admiradas, não o contavam o quanto absurdo eram as coisas que falava.
Era difícil. Voltava para a casa e sentir-se só. Vibrava com uma música que o fazia se sentir como "naquele dia". E assim fazia a vida, entre trancos e barrancos, trazia carne e as vezes as comia. As vezes não. Descascava madeira para fazer miniaturas e confundia certo tipo de fruta "habitavam" em seu quintal.
Neste espaço perdido, intacto e rejeitado vivia uma flor das mais belas pétalas, com pólen em abundância e aroma de amolecer os joelhos. Poucos sabiam, mas aquela era uma flor das mais raras. Trazia em sua história muito pouco a contar. Ninguém a conhecia. Mas a poucos metros, os olhos castanhos olhavam intensamente para a flor. Admirada, ela observa a obstinada beleza.

Todo esse furor partia das retinas avassaladora de Maria da Clemência, que era de família humilde e que não desfrutava de tantas regalias. Aliás, a casa dos Clemência era farta de miséria.
Neste mesmo lugar Maria nasceu, criou-se e nunca havia imaginado que pudesse sair.
O pai era um chucro. Trabalhador da terra que ganhava o suficiente para para pagar todo o dia o café que ele tomava sozinho na padaria para aguentar o duro dia da lavoura. A mãe era meio louca e por este motivo se lançava artisticamente a pedir esmolas na escadarias da igreja.
Irmãos não tinha. Mas bichos, aos montes. Além dos vários cachorros de rua que vinham passar catedraticamente para receber os afagos sensíveis de Maria, havia um papagaio esquelético, quase morto, e os pássaros que comiam os ralos frutos de uma goiabeira da vizinha.
Ela também tinha enorme afeição pelos animais peçonhentos. Admirava, por exemplo, o destemido e suicida escorpião, que andavam em grande quantidade embaixo dos poucos móveis de seu quarto. Maria era uma amante da vida, independente de como fosse.
A moça vivia pacatamente com a situação, não fazia melindre nem na hora de buscar água no poço a doze quilômetros. Ela tinha a garra dos guerreiros mongóis e a paciência de um monge tibetano nos montes do Imalaia.
Foi nesse dia, após correr atrás de algum alpiste para um charmoso canário-da-terra, que sentiu aquele cheiro inclassificável. Seus olhos lacrimejaram e seu rumo deu uma reviravolta. Esqueceu-se um pouco de quem era e partiu vagarosamente para sua busca insana.
Foi quando sentiu pena do lugar tão asqueroso que avistara. Aquele quintal que mais parecia um ferro velho de hollywood. Tantas coisas caras em desarmonia, abandonadas, quebradas e mesmo, aparentemente, em pleno funcionamento.
Maria se concentrou no aroma que acabara de sentir. Fitou com afinco no meio de algumas plantas raras e sem poda. E lá estava. Suave, intensa e desconcertante. A flor mais bela e perfumada que já havia visto em sua vida.
Não tinha muita certeza do que sentia, mas estava convicta de que sua história não seria a mesma depois daquele momento.
Escorou na cerca com os cotovelos, limpou algumas lágrimas que ainda escorriam e suspirou aliviada.

A vida parecia que continuara. Maria da Clemência decide mais uma vez ler as páginas soltas de Madame Bovary. Eram folhas achadas por ela mesma no lixo, ainda com manchas de chorume, em uma casa perto do mercadinho.
Ficou novamente intrigada com as frases desconexas que mexiam com alguns instintos escondidos.
Ela não entendia por completo o que era tudo aquilo, mas sentia coisas que jamais sentira antes.
Estava concentrada nas palavras quando bateram na porta. Era o dono da lavoura que seu pai trabalhava.
O homem bem alinhado, barbudo e com certa desenvoltura veio lhe pedir uma prosa para aquele fim de tarde.
- Incomodo?
- Não, por favor. Pode entrar.
Ela examina o pote de café para ter certeza de que não havia nada. Ficou um pouco constrangida e o perguntou se o sujeito queria um copo de água.
Ele agradeceu, mas disse que não era necessário. Ela, já com um copo engordurado na mão, sorriu meio sem jeito.
O homem em seguida pergunta sobre sua mãe. Vasculhando o histórico, questiona ironicamente se estava na escadaria. Maria encosta desajeitadamente o pulso sobre a nuca, deixando os cabelos cair sobre a cena, e confirma.
Ela pergunta, enfim, se estava tudo bem. Queria saber se o pai estava com algum problema.

O homem responde prontamente que está tudo bem e emenda uma conversa sobre algumas coisas vagas e sem nexo. Diz que gostaria de passar mais um tempo com ela. Queria saber se era possível.
Maria da Clemência se sente traindo o que não tinha. Pensa em muita coisa da sua vida. Vem em sua mente o escorpião, a miséria, os uivos dos lobos na madrugada, o sol quente de quando vai buscar água para matar a sede de seus pais. Lembra da flor e decide de vez por uma sentença. Ela não queria aquilo.
Inventa uma desculpa e diz que precisa fazer alguma coisa muito importante. Mas fica receptiva ao que o homem tem para falar. Se tivesse, claro, outra coisa a se falar.
Ele diz que está tudo bem e que precisa sair naquele momento. Tinha uma entrega muito importante de adubo para receber. Dão as mãos - meio que sem jeito - e terminam definitivamente o encontro desconcertante.
Ela volta ao quarto, mas não consegue continuar as leituras vagas do livro que conta a história de uma mulher decidida, atraente e cheio de personalidade. Maria sente que essa é mulher que deseja ser.
Não sabia o que fazer e por isso decidiu por uma obrigação. Subiu no telhado para tirar o lixo do telhado que é jogado pelas pessoas que passam pela rua.
Dentre esse lixo, haviam bilhetes embrulhando pedras que diziam, entre outros insultos, "louca sem pudor!" e "velho desajeitado".

Tentou não prestar muito atenção nisso e olhou para o horizonte. O sol desaparecia e dava por fim mais um dia de angústia e esperança. Maria sonhava enquanto fazia novamente algo de bom para sua família.

Amanhece mais um dia na casa da flor inebriante e o homem decide enfim acordar. Como sempre, usa o ritual catedrático de todas as manhãs. Espreguiça. Estrala os dedos dos pés. Coça a barriga. Espreguiça-se mais um pouco.
Olha no relógio. Sete e quinze. Já está na hora de se arrumar. Toma o café e salta a caminho do trabalho. A pé, ele percorre por poucas ruas a caminho do escritório de engenharia Saldanha & Saldanha.
Percebe que algo está acontecendo de diferente. Olha para o fim da rua e encanta-se: calmamente e levantando alguma poeira vem chegando na pacata cidade um circo.
Os caminhões vem trazendo lonas, ferro, palhaços, malabaristas, trapézios, as barbas de uma mulher, alguns animais e muita esperança.
Parado, estático, Humberto Saldanha lacrimeja os olhos e emocionado sente-se reconfortado com a certeza de que saciará o desejo de muito tempo.
Humberto adora a sensação de encantamento do universo das crianças. É nesse momento que não precisa mais pensar nas contas, nos clientes e em suas metas.
Decide então continuar. Pensando que dali a algum tempo o seu pesar diminuirá, parte em direção ao escritório. Vai, leve, curtindo passo a passo o seu deleite.
Aos saltos pela escada, o então Senhor Saldanha abre a porta com um cantado "Bom dia!". Todos estranham e levam algum tempo para retornar com algumas respostas vagas, desafinadas e desconexas.
Fala com o estagiário sobre algumas coisas que precisam ser feitas e escorrega para sua sala.
Na mesa, papéis, projetos, muitos lápis sem ponta, uma mancha de café e alguns cigarros soltos. Humberto olha para tudo aquilo e suspira. Vira-se para a janela e promete que aproveitará a vida.

É neste momento que chega no escritório de engenharia o dono da lavoura. O homem pede para falar com "Seu Humberto", que prontamente o recebe.
- Senhor Martinho, bom dia!
- Seu Humberto, venho agora mesmo da minha lavoura e penso que você pode me ajudar com uma questão.
Humberto convida o homem para sentar e questiona sobre os detalhes da situação.
- E como eu, com a engenharia, posso ajudar no andamento de uma lavoura tão produtiva quanto a sua?
- Produtiva mais ou menos. As safras não andam lá aquelas coisas. Acontece que tenho pensado seriamente em investir em outro empreendimento. Para isso, gostaria de construir um barracão.
O senhor Martinho explica que o projeto deste barracão deve ser elaborado com algumas características. Conta que será necessário um teto com abertura para luz solar e um sistema avançado de irrigação. Não fala sobre o que cultivará, mas que será necessário que o projeto seja executado com grande agilidade.
Receoso, o engenheiro pergunta se não é nada ilegal. Em todos esses anos, seu escritório se gabava por nunca havia se metido em nada de "errado" e que não seria nessa hora que ele se renderia a "essas coisas".
Prontamente Seu Martinho garante que não têm nada de ilegal, mas que precisa manter a discrição por uma questão de mercado.
Humberto relaxa e de certa forma confia na palavra do empresário. Os dois apertam as mão e decidem falar sobre os detalhes, preços e prazos.

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